top of page

Três Anos de Guerra na Ucrânia: Desafios e Impactos para o Direito Internacional

Foto do escritor: Thaís Peixoto Saraiva CoimbraThaís Peixoto Saraiva Coimbra

Introdução


A guerra na Ucrânia, ao ingressar em seu terceiro ano, consolidou-se como um dos conflitos mais emblemáticos e complexos do século XXI, evidenciando não apenas os desafios geopolíticos, mas também os limites da aplicabilidade do direito internacional. A eclosão da guerra em fevereiro de 2022 não foi um evento isolado, mas sim o ponto culminante de uma série de disputas e tensões que remontam a 2014, quando a Federação Russa anexou a Crimeia e passou a apoiar grupos armados não estatais com reivindicações de autodeterminação e oposição ao governo central no Donbass. Desde então, a ordem jurídica internacional tem sido repetidamente testada, com múltiplas violações de princípios fundamentais do direito internacional, incluindo normas relativas à soberania estatal, proibição do uso da força e proteção de populações civis em tempos de conflito armado.

A guerra não apenas reconfigurou a estrutura de segurança da Europa, mas também provocou um intenso debate jurídico sobre a eficácia das instituições internacionais e a aplicabilidade de sanções e mecanismos de responsabilização. O envolvimento de múltiplos atores, tanto estatais quanto não estatais, ampliou a complexidade da resposta internacional, colocando desafios significativos para a aplicação do Direito Internacional Humanitário (DIH), do Direito Penal Internacional e do Direito dos Conflitos Armados. O conflito também tem implicações diretas sobre o comércio global, a segurança alimentar, o meio ambiente e a estabilidade energética, gerando efeitos colaterais que extrapolam a região e impactam outras partes do mundo, particularmente países em desenvolvimento que dependem das exportações de cereais e energia da Ucrânia e da Rússia.

Este texto examina os principais marcos legais e institucionais relacionados ao conflito, desde suas raízes históricas e jurídicas até os desafios contemporâneos para a aplicação efetiva das normas internacionais. A análise se concentra em violações da Carta da ONU, crimes de guerra e crimes contra a humanidade, além dos impactos políticos, ambientais e econômicos que o conflito impõe à Europa e à comunidade internacional, com especial atenção ao papel das organizações multilaterais e ao funcionamento dos mecanismos de responsabilização jurídica internacional.

 

Violação da Carta da ONU e as implicações para a soberania Estatal

A ofensiva militar russa contra a Ucrânia representa uma violação expressa do Artigo 2(4) da Carta das Nações Unidas, que proíbe o uso da força contra a integridade territorial ou independência política de qualquer Estado (ONU, 1945). O respeito à soberania estatal é um dos pilares do direito internacional, e sua transgressão gera consequências graves para a estabilidade global.

A Federação Russa justificou suas ações sob o argumento de autodefesa e proteção das populações russófonas no leste ucraniano. No entanto, tais argumentos foram amplamente rejeitados pela comunidade jurídica internacional. A Resolução A/ES-11/1 da Assembleia Geral da ONU (2022) condenou expressamente a invasão e reafirmou a soberania e a integridade territorial da Ucrânia dentro de suas fronteiras internacionalmente reconhecidas.

A anexação da Crimeia em 2014 e os referendos realizados nos territórios ocupados em 2022 agravaram ainda mais a disputa sobre soberania territorial. A Corte Internacional de Justiça (CIJ) foi acionada para julgar a responsabilidade russa por violações do direito internacional decorrentes dessas ações (CIJ, 2023; Geneva Academy, 2023).

 

A responsabilização por crimes de guerra

O conflito tem sido marcado por graves violações do Direito Internacional Humanitário (DIH), que estabelece as normas para a condução das hostilidades e a proteção de civis, combatentes hors de combat e bens indispensáveis à sobrevivência da população. As violações documentadas incluem ataques deliberados contra populações civis, uso de armas proibidas, destruição de infraestruturas essenciais e deslocamentos forçados em larga escala. O Direito Penal Internacional, regido pelo Estatuto de Roma, tipifica esses atos como crimes de guerra e crimes contra a humanidade, tornando os perpetradores passíveis de responsabilização.

Relatórios do Escritório do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (OHCHR, 2023) documentam uma sistemática prática de execuções extrajudiciais, tortura e tratamentos desumanos, além da destruição de hospitais, escolas e sistemas de abastecimento de água, em flagrante violação do Protocolo Adicional I às Convenções de Genebra (1977). Esses atos configuram graves violações dos direitos humanos e do direito humanitário, exigindo uma resposta jurídica contundente da comunidade internacional.

O Estatuto de Roma, que rege o Tribunal Penal Internacional (TPI), prevê a responsabilização de indivíduos envolvidos na perpetração de tais crimes. Em 2023, o TPI emitiu mandados de prisão contra autoridades russas por crimes relacionados à deportação forçada de crianças ucranianas para território russo (TPI, 2023). A transferência forçada de crianças é considerada um crime de guerra e pode também ser enquadrada como crime contra a humanidade nos termos do Artigo 7(1)(d) do Estatuto de Roma.

Contudo, desafios persistem na efetivação dessas ordens devido à proteção diplomática oferecida pela Federação Russa aos acusados e às limitações da cooperação internacional (ISPI, 2023). Além disso, o uso do poder de veto no Conselho de Segurança da ONU por um dos membros permanentes representa um obstáculo substancial à adoção de medidas coercitivas mais eficazes, enfraquecendo a capacidade das instituições internacionais de garantir a responsabilização por crimes internacionais.


Impactos jurídicos, políticos, econômicos e ambientais no contexto global

A guerra na Ucrânia impôs mudanças significativas na dinâmica geopolítica europeia. A União Europeia (UE) adotou um conjunto de sanções econômicas e restrições comerciais para enfraquecer a capacidade militar russa e apoiar a resiliência ucraniana (Conselho da UE, 2023). Simultaneamente, o conflito gerou impactos econômicos severos, incluindo o aumento do custo de alimentos devido à destruição de estoques de grãos e infraestrutura agrícola na Ucrânia, um dos principais exportadores mundiais de cereais.

A segurança alimentar global foi diretamente afetada, com impactos severos em países africanos que dependem das exportações ucranianas e russas. O bloqueio de portos no Mar Negro e os ataques a infraestruturas de escoamento de grãos agravaram ainda mais essa crise, gerando uma emergência alimentar e elevando os preços de commodities essenciais.

No campo do Direito Ambiental Internacional, os bombardeios em instalações industriais e agrícolas levaram à contaminação de solos e lençóis freáticos, ampliando os impactos ecológicos do conflito. A destruição de usinas nucleares, como a usina de Zaporizhzhia, levanta sérias preocupações sobre o risco de um desastre radiológico de grande escala, o que viola princípios fundamentais do direito internacional ambiental e das normas da Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA, 2023).

Em termos jurídicos, países europeus como Alemanha e França iniciaram investigações por jurisdição universal sobre crimes de guerra cometidos no conflito (Parlamento Europeu, 2023; ONU, 2023). O impacto econômico da guerra extrapola o continente europeu, afetando mercados globais, a segurança energética e as cadeias de suprimentos internacionais, criando desafios para a estabilidade econômica mundial.

 

Conclusão

O terceiro ano da guerra na Ucrânia continua a desafiar a ordem jurídica internacional, testando os limites das instituições responsáveis por garantir a aplicação das normas internacionais. O impacto do conflito transcende as fronteiras europeias, afetando a segurança global, o equilíbrio geopolítico e a estabilidade econômica. A destruição de infraestrutura crítica e as sanções impostas têm efeitos diretos na cadeia de suprimentos global, afetando, inclusive, países em desenvolvimento que dependem das exportações ucranianas e russas.

Para garantir a responsabilização por violações do direito internacional, é fundamental o fortalecimento das instituições internacionais e a adoção de mecanismos de aplicação mais eficazes. O direito internacional enfrenta um dos seus maiores testes desde o fim da Segunda Guerra Mundial, e a resposta da comunidade internacional será determinante para a manutenção da ordem global baseada em regras.

A cooperação multilateral deve ser reforçada, garantindo que sanções econômicas e medidas de responsabilização não sejam apenas simbólicas, mas efetivas. Além disso, a reconstrução da Ucrânia exigirá um compromisso robusto da comunidade internacional, tanto em termos de assistência humanitária e financeira quanto no suporte institucional para garantir a reconstrução jurídica e política do país. A preservação da estabilidade global dependerá da capacidade de resposta e mediação de stakeholders, de organismos internacionais, e do compromisso dos Estados em garantir o respeito às normas fundamentais do direito internacional.

 

Referências

United Nations (1945). Charter of the United Nations. Disponível em: https://www.un.org/en/about-us/un-charter

Geneva Academy (2023). Report on International Humanitarian Law and the War in Ukraine. Disponível em:: https://www.geneva-academy.ch/

Italian Institute for International Political Studies (ISPI) (2023). Analysis on International Sanctions and Armed Conflicts. Disponível em:: https://www.ispionline.it/en

Office of the United Nations High Commissioner for Human Rights (OHCHR) (2023). Report on War Crimes in Ukraine.

European Union Council (2023). Sanctions Package Against the Russian Federation. Disponível em: https://www.consilium.europa.eu/en/

European Parliament (2023). Investigations and Accountability for War Crimes in Ukraine. Disponível em: https://www.europarl.europa.eu/

International Court of Justice (2023). Ukraine v. Russian Federation Case.

International Atomic Energy Agency (IAEA) (2023). Report on Nuclear Safety in Ukraine. Disponível em: https://www.iaea.org/

 

Texto

Roberta Abdanur, Coordenadora do Centro de Direito Internacional e Mestre em Direito Internacional dos Conflitos Armados, Geneva Academy


Especialista em resposta humanitária, atua diretamente na Ucrânia desde abril de 2022 como voluntária e sócia investidora da VVolunteer, uma plataforma de impacto humanitário, membro do Fórum de Empresas com Refugiados ONU, contribuindo para a implementação de programas de assistência e proteção a populações afetadas pelo conflito.

 
 

Posts recentes

Ver tudo

Comments


CDI logo.png

©2023 por Centro de Direito Internacional em Belo Horizonte, Brasil

O Centro de Direito Internacional faz parte do 

bottom of page