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Eleições na Autoridade Internacional dos Fundos Marinhos (ISA): Em momento histórico, oceanógrafa brasileira é eleita nova Secretária-Geral

Em recente eleição no plano internacional, a oceanógrafa brasileira Letícia Carvalho foi escolhida para o cargo de Secretária-Geral da Autoridade Internacional dos Fundos Marinhos (ISA, em inglês), a fim de atuar durante os mandatos de 2025-2028. A disputa pela vaga ocorreu durante a 29ª Assembleia da ISA, oportunidade em que Letícia concorreu com o atual Secretário-Geral, o advogado britânico Michael Lodge.


O prestígio da escolha remonta ao fato de que Letícia se torna a primeira mulher, cientista e latino-americana a ocupar tal função junto à Autoridade desde a sua criação. Neste histórico momento de projeção nacional, os olhos da comunidade brasileira de juristas se voltam para a ISA, observando sua história e o papel por ela desempenhado na defesa e difusão do Direito do Mar junto à comunidade internacional, bem como as projeções doravante aguardadas com o resultado da eleição.


Entre interesses e medos


O interesse pelo mar transcende séculos. Seja como personagem de lendas míticas ou cenário de grandes feitos, os registros mais longínquos denotam que a interação entre a humanidade e os oceanos foi determinante para a composição de muitos Estados, assim como o plano de fundo dos mais diversos contextos - expansão territorial, interações culturais, conquistas comerciais, migrações civilizatórias, dentre outras. 


Ao se ver cercado pelos mares, o Homem sempre se colocou em posições de bravura como pioneiro de muitas aventuras. No mais próximo dos exemplos, importa mencionar que o próprio “descobrimento” do Brasil, a Ilha de Vera Cruz ou Terra dos Papagaios, provém das expedições de navegadores que arriscaram-se ao atravessar o Atlântico na busca pelas Índias. 


Não obstante, muito além dos interesses econômicos quase sempre envolvidos nas atividades marítimas, fato é que o mar apresenta-se como uma das peças principais à manutenção da vida e bem-estar dos espécimes que integram a Terra. Isto porque sua participação não representa tão somente a composição geográfica de grande parte do planeta, mas também a adaptação de fatores que o tornam habitável, tais quais a regulação do clima e o fornecimento de oxigênio. Ademais, assim como nas porções terrestres, o mar representa território fértil para os mais diversos recursos naturais, tais quais petróleo, gás natural e minérios.


Dito isto, notório é que os oceanos que banham as costas despertam em muito a atenção para os benefícios de explorar suas águas. Se outrora o mar representava o caminho para tecidos, tapetes, animais e especiarias fornecidos à Europa pelo resto do mundo, para longe das antigas rotas comerciais o que está abaixo dele hoje também é do interesse da humanidade.


Logo, paralelo ao reconhecimento da importância do mar, tornou-se necessário estabelecer um marco jurídico e normativo que regulamentasse a utilização com respeito de tal espaço comum pelas mais diversas nações, provando não se tratar de um lugar onde todos fazem o querem, sem pensar nas consequências. Surge então a Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar. 


Mar: “terra” sem lei?


Muito distante de uma “terra” sem lei, como chama o ditado popular brasileiro, a Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (UNCLOS, em inglês) é um tratado multilateral que define e codifica padrões e princípios do direito marítimo internacional, herdados do direito internacional consuetudinário relacionado a assuntos marítimos e expressos em grande medida na Carta das Nações Unidas e nas normas atuais do direito marítimo internacional, tais quais as Convenções de Genebra de 1958. Hoje ratificada por 167 Estados, mais a União Europeia, a UNCLOS desenvolve conceitos importantes como “Área” - o leito do mar, os fundos marinhos, e o seu subsolo além dos limites da jurisdição nacional - e “recursos” - todos os recursos minerais sólidos, líquidos ou gasosos in situ, na Área, no leito do mar ou no seu subsolo, incluindo os nódulos polimetálicos; os recursos, uma vez extraídos da Área, são denominados "minerais".


Para além das questões conceituais, a UNCLOS foi responsável por criar um órgão competente para ouvir disputas relacionadas à sua interpretação e aplicação, bem como uma organização internacional autônoma que congregasse os países dela signatários. Seria este o princípio do Tribunal Internacional do Direito do Mar (International Tribunal for the Law of the Sea - ITLOS, em inglês) e da Autoridade Internacional dos Fundos Marinhos (International SeaBed Authority – ISA, em inglês).


O Tribunal Internacional do Direito do Mar possui jurisdição sobre qualquer disputa referente à interpretação ou aplicação da UNCLOS, além de todos os assuntos especificamente previstos em qualquer outro acordo que a ele também confira jurisdição. Nesse sentido, a título de exemplo, os principais casos já examinados pelo ITLOS dizem respeito à delimitação de zonas marítimas, navegação, conservação e gestão dos recursos vivos do mar, proteção e preservação do ambiente marinho, assim como pesquisa científica marinha.


De outro lado, com sede em Kingston, na Jamaica, a Autoridade Internacional dos Fundos Marinhos é um complexo organismo criado em 1994 que organiza e controla todas as atividades relacionadas a recursos minerais na Área para o benefício da humanidade como um todo. É como plano de fundo desta notícia que destaca-se o trabalho desempenhado pela ISA, a qual destina-se o mandato de garantir a proteção efetiva do ambiente marinho contra efeitos nocivos que podem surgir de atividades relacionadas ao fundo do mar profundo. Isto porque é nele que se encontram os chamados “recursos” e/ou “minerais” que despertam a atenção da humanidade, muitas vezes fomentando uma busca desenfreada a ponto de desencadear a extração desequilibrada de suas fontes. 


Destaca-se que cabe à ISA coordenar e assegurar o que dispõe a UNCLOS, gerenciando os limites para as empresas que exploram a Área, além da distribuição dos recursos advindos de suas atividades em benefício da humanidade, tais quais aos mais desfavorecidos ou destituídos de litoral. Por consequência, mostra-se indispensável o papel que por ela é desempenhado, principalmente como precursora dos princípios da igualdade soberana de seus membros, da boa-fé e do cumprimento das obrigações. 


Mulher, cientista e latino-americana


Letícia Carvalho carrega muito mais do que tão somente o mérito de ser a primeira brasileira a ocupar o cargo de Secretária-Geral da ISA: é também a primeira mulher, cientista e latino-americana que o faz. Em sua ampla trajetória, carrega 26 anos de experiência em cargos na Administração Pública e em organismos multilaterais, tais quais no Ministério do Meio Ambiente (MMA), em Brasília, e no Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA), em Nairóbi. 


Na contagem final, estima-se que Letícia tenha recebido 79 votos de um total de 113. Na disputa pelo cargo, o advogado britânico Michael Lodge, que já ocupava a função de Secretário-Geral da ISA desde 2016, buscava a reeleição. Em seu mandato, envolveu-se em algumas polêmicas denunciadas pelo jornal americano New York Times, segundo o qual estaria pressionando “diplomatas a acelerar o início da mineração em escala industrial no fundo do Oceano Pacífico” (tradução nossa). De qualquer modo, em recente comunicado de imprensa, a ISA expressou a ele “imensa gratidão e reconhecimento” (tradução nossa) pelo tempo e trabalho dedicado à organização, na qual “fez avanços significativos na promoção de boa governança e transparência, melhorou o desempenho organizacional e forneceu blocos de construção para a gestão sustentável de recursos minerais de águas profundas para o benefício de toda a humanidade, inclusive por meio do avanço da pesquisa científica na área do leito marinho profundo” (tradução nossa). 


Quanto à sua atuação, entende-se que Letícia assumirá uma posição de regulação das atividades exploratórias mais conservadora que o seu antecessor. Em entrevista ao portal australiano ABC, ela afirma que “não assumiria essa função se fosse contra a mineração em alto mar" (tradução nossa), porém se diz “absolutamente leal à visão do Direito do Mar estabelecida há 30 anos" (tradução nossa), qual seja mais protecionista e que originou a UNCLOS.

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