top of page

A Internacionalização dos Direitos Humanos e a Humanização do Direito Internacional

A ideia de direitos humanos já existia há tempos na Europa, porém, entende-se que foi a Carta Magna (1215) que teria sido a influência inicial mais significativa para esses direitos, vez que enumerou o que mais tarde viria a ser considerado direitos humanos. Ela consagra direitos civis e estabelece o Estado de Direito. Sua grande inovação, no entanto, é a limitação da atuação do rei, que, pela primeira vez, estaria submetido às leis que editava.


No século XVIII, em meio à Revolução Americana, que viria a tornar os Estados Unidos da América independente em relação à Inglaterra, importantes avanços na matéria de direitos humanos foram tomados, apesar de, naquela época, o termo “direitos humanos” ainda não ser usado como na concepção atual.


Em 1776, a Declaração de Direitos da Virgínia proclamou o direito à vida, à liberdade e à propriedade:


Que todos os homens são, por natureza, igualmente livres e independentes, e têm certos direitos inatos, dos quais, quando entram em estado de sociedade, não podem por qualquer acordo privar ou despojar seus pósteros e que são: o gozo da vida e da liberdade com os meios de adquirir e de possuir a propriedade e de buscar e obter felicidade e segurança.[1]


No mesmo ano, em 04 de julho de 1776, surge a Declaração de Independência dos Estados Unidos, a qual, influenciada por ideais iluministas, teve como teor preponderante a limitação do poder estatal e a valorização da liberdade individual. Mais tarde, em 1791, por meio da Bill of Rights, a Declaração receberia artigos que expressavam, claramente, direitos individuais, por meio de dez emendas.


Poucos anos depois, em 1789, com a Revolução Francesa, foi elaborada a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. Segundo Hannah Arendt, a Declaração significou que o homem seria a fonte da lei, e não Deus, ou os costumes da história, como era compreendido anteriormente (ARENDT, 2012). O documento apresentava uma mescla de direitos civis e políticos, foi inspirado nos precedentes norte-americanos, e constituía a fundação de uma sociedade civil na França. Nas palavras de Lynn Hunt:


O documento tão freneticamente ajambrado era espantoso na sua impetuosidade e simplicidade. Sem mencionar nem uma única vez rei, nobreza ou igreja, declarava que "os direitos naturais, inalienáveis e sagrados do homem" são a fundação de todo e qualquer governo. Atribuía a soberania à nação, e não ao rei, e declarava que todos são iguais perante a lei, abrindo posições para o talento e o mérito e eliminando implicitamente todo o privilégio baseado no nascimento. Mais extraordinária que qualquer garantia particular, entretanto, era a universalidade das afirmações feitas. As referências a "homens", "homem", "todo homem", "todos os homens", "todos os cidadãos", "cada cidadão", "sociedade" e "toda sociedade" eclipsavam a única referência ao povo francês (HUNT, 2009, p. 14).


A partir destes dois importantes documentos – a Declaração de Independência dos Estados Unidos e a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão – os direitos que antes eram considerados como sendo de um determinado povo, como por exemplo, os documentos ingleses, foram transformados em direitos humanos, com caráter universal.


Este universalismo dos direitos humanos, no entanto, não prosperou no próximo século, em função da influência do positivismo jurídico, inspirado na filosofia do direito de Hegel, por meio do qual o Estado é dotado de personalidade, e de vontade própria, reduzindo o direito internacional a um direito estritamente interestatal, pois o direito internacional não estava mais acima, mas entre os Estados soberanos (TRINDADE, 2008). Em relação aos direitos humanos, estes passaram a ser limitados aos que eram concedidos pelo Estado.


Apesar de o início do século XX ter contado com importantes avanços na proteção dos direitos humanos, no âmbito internacional, e aqui faz-se referência à evolução do Direito Internacional Humanitário e à Liga das Nações, a proteção dos direitos humanos no plano internacional era realizada somente pelo mecanismo das relações interestatais. Não existia um órgão que implementasse tais direitos, de forma que os indivíduos exercessem a capacidade processual no plano internacional.


Diante disso, de modo a proceder com o avanço da proteção dos direitos humanos no plano internacional, seria necessário redefinir ideologicamente e culturalmente o conceito de soberania. Os direitos humanos deveriam ser entendidos como questão de interesse internacional, e não de uma questão interna dos Estados.

Destaca-se, assim, a concepção contemporânea de direitos humanos, introduzida pela Declaração Universal de pacto e reiterada pela Declaração de Direitos Humanos de Viena de 1993, a qual corresponde ao fruto da internacionalização dos direitos humanos, e é marcada pela universalidade e indivisibilidade desses direitos. Tal movimento é recente na história, como bem define Thomas Buergenthal:


O moderno Direito internacional dos Direitos Humanos é um fenômeno do pós-guerra. Seu desenvolvimento pode ser atribuído às monstruosas violações de direitos humanos da era Hitler e a crença de que partes destas violações poderiam ser prevenidas se um efetivo sistema de proteção internacional de direitos humanos existisse (BUERGENTHAL apud PIOVESAN, 2019, p. 65.).


Foi a partir da Segunda Guerra Mundial, e as atrocidades cometidas pela Era Hitler, que o Estado foi apresentado como grande violador de direitos humanos. Tal período ficou marcado pela lógica da destruição e descartabilidade da pessoa humana, sobretudo em função do antissemitismo, que resultou na morte de aproximadamente 11 milhões de pessoas, sendo 6 milhões judeus, além de comunistas, homossexuais e ciganos (PIOVESAN, 2019).


Esse momento da história significou uma ruptura do paradigma dos direitos humanos e, diante desta ruptura se vislumbra a necessidade de se reconstruir os direitos humanos, como referencial ético a orientar a ordem internacional contemporânea. O período Pós-Guerra, por conseguinte, é o momento em que ocorre tal reconstrução, tendo em vista a necessidade de proclamar direitos e de garantir sua aplicação.


Norberto Bobbio afirma que “o desenvolvimento da teoria e da prática (mais da teoria do que da prática) dos direitos do homem ocorreu, a partir do final da guerra, essencialmente em duas direções: na direção de sua universalização e naquela de sua multiplicação” (BOBBIO, 2004, p. 33). Esta multiplicação, por sua vez, teria ocorrido de três modos:


a) porque aumentou a quantidade de bens considerados merecedores de tutela; b) porque foi estendida a titularidade de alguns direitos típicos a sujeito diversos do homem; c) porque o próprio homem não é mais considerado como ente genérico, ou homem em abstrato, mas é visto na especificidade ou na concreticidade de suas diversas maneiras de ser em sociedade, como criança, velho, doente, etc. (BOBBIO, 2004, p. 33).


O período pós-guerra, e, portanto, de reconstrução dos direitos humanos apresenta, segundo Flávia Piovesan (2019), dois ramos: de um lado a emergência do Direito Internacional dos Direitos Humanos, e de outro, a emergência da nova feição do Direito Constitucional ocidental, resgatando o pensamento kantiano, sobretudo no que diz respeito à dignidade humana.


No âmbito do Direito Internacional começa a ser delineado um sistema normativo de proteção dos direitos humanos. “É como se se projetasse a vertente de um constitucionalismo global, vocacionado a proteger direitos fundamentais e a limitar o poder do Estado, mediante a criação de um aparato de proteção de direitos” (PIOVESAN, 2019, p. 66).


Já em relação ao Direito Constitucional ocidental, passam a ser elaborados textos constitucionais abertos a princípios, dotados de elevada carga axiológica, com destaque ao valor da dignidade humana. O parâmetro do Estado muda da necessidade de conquista e colonização, para a construção de um “Estado de Direito Democrático, Social e Ambiental”, no plano interno, e de Estados abertos e em constante diálogo internacional, no plano externo. Assim, o Poder Constituinte dos Estados está cada vez mais vinculado a princípios e regras de direito internacional, bem como está cada vez menos vinculado com a ideia de soberana autônima que gravita em torno da soberania do Estado, ou seja, são cada vez mais reconhecidos os limites do Estado a partir da ótica da humanidade.


A Declaração Universal dos Direitos do Homem, proclamada e adotada pela Organização das Nações Unidas – ONU, inicia, portanto, uma fase de positivação e universalização dos direitos humanos pela primeira vez na história (AMARAL JR, 2008). Agora, o tema de direitos humanos é tratado internacionalmente, e todos os humanos são destinatários dos direitos protegidos, não somente aqueles cidadãos de um Estado específico.


A partir da Declaração de 1948, começa a se desenvolver o Direito Internacional dos Direitos Humanos, mediante a adoção de inúmeros instrumentos internacionais de proteção. A Declaração de 1948 confere lastro axiológico e unidade valorativa a esse campo do Direito, com ênfase na universalidade, indivisibilidade e interdependência dos direitos humanos (PIOVESAN, 2019, p. 69).


Cançado Trindade afirma que a experiência internacional tem demonstrado um consenso em relação ao caráter universal dos direitos humanos, “mais além das diferenças quando a concepções doutrinárias e ideológicas e particularidades culturais” (TRINDADE, 1998, p. 9). Assim, foi possível o considerável avanço da matéria, como a promulgação da Declaração em um período de pós-guerra e a adoção de dois Pactos de Direitos Humanos em plena guerra-fria. “Em meio a tantos antagonismos da época, foi possível afirmar a indivisibilidade de todos os direitos humanos” (TRINDADE, 1998, p. 9).


A partir disto, cria-se, então, um sistema internacional de proteção dos direitos humanos. Tal sistema é integrado atualmente por tratados e convenções internacionais que refletem a consciência compartilhada pelos Estados, na medida em que correspondem a um consenso acerca de temas centrais aos direitos humanos. Nesse sentido, cabe destacar alguns dos Pactos e Convenções vigentes, bem como os Estados que os retificaram: o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (1966) possui 173 Estados-partes; o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (1966) possui 170 Estados-partes; a Convenção Internacional sobre a Eliminação da Discriminação Racial (1966) possui 182 Estados-partes; a Convenção Internacional sobre a Eliminação da Discriminação contra a Mulher (1979) possui 189 Estados-partes; a Convenção contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes (1984) possui 169 Estados-partes; e a Convenção sobre os Direitos da Criança (1989) possui 196 Estados-partes.


Ao lado deste sistema normativo global da ONU, surgem também sistemas regionais de proteção, com suas próprias declarações de direitos, que buscam internacionalizar os direitos humanos nos planos regionais, particularmente nos continentes Europeu, Americano e Africano.


Os sistemas regionais de proteção dos direitos humanos não são totalmente separados do sistema global. Um complementa o outro, na medida em que ambos buscam a maior efetividade possível na tutela e proteção dos direitos humanos. Nas palavras de Cançado Trindade: “a complementaridade dos instrumentos de direitos humanos nos planos global e regional veio a refletir em última análise a especificidade e a autonomia do Direito Internacional dos Direitos Humanos” (TRINDADE, 1998, p. 13).


Referências:

DA VIRGÍNIA, Declaração de Direitos. Disponível em <http://www.direitoshumanos.usp.br/index.php/Documentos-anteriores-%C3%A0-cria%C3%A7%C3%A3o-da-Sociedade-das-Na%C3%A7%C3%B5es-at%C3%A9-1919/declaracao-de-direitos-do-bom-povo-de-virginia-1776.html>. Acesso em: 12 jun. 2020.

ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo; tradução Roberto Raposo. — São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

HUNT, Lynn, A invenção dos direitos humanos: uma história, tradução Rosalra Eichenberg. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

TRINDADE, A.A.C. A pessoa humana como sujeito do Direito internacional: A experiência da corte interamericana de direitos Humanos. In Novas Perspectivas do Direito internacional contemporâneo, Rio de Janeiro: Renovar, 2008.

________________. O legado da Declaração Universal de 1948 e o futuro da proteção internacional dos Direitos Humanos. AJURIS, Porto Alegre, v. 25, n. 73, p. 379-419, 1998.

PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e Justiça Internacional. 9.ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2019.

BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos; tradução Carlos Nelson Coutinho; apresentação de Celso Lafer. Nova ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004.

AMARAL JR, Manual do Candidato: Noções de Direito e Direito Internacional, 3ª ed. ampliada e atualizada. Brasília: Funag – 2008.



[1] Declaração dos Direitos da Virgínia, artigo 1º.

0 comentário

Comments


bottom of page