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A dificuldade do Tribunal Penal Internacional na crise humanitária do Sudão e as suas implicações na legitimidade do Direito Penal Internacional

Atualizado: há 13 horas


Criado pelo Estatuto de Roma de 1998, o Tribunal Penal Internacional (TPI) é uma instituição crucial na proteção dos Direitos Humanos, no cumprimento do Direito Internacional Humanitário e, atualmente, se destaca como uma das principais fontes do Direito Penal Internacional. De maneira inovadora, estabeleceu-se um tribunal permanentemente dedicado ao julgamento de indivíduos responsáveis por crimes de genocídio, crimes contra a humanidade, crimes de guerra e agressão, crimes estes que, como defende Cançado Trindade (2010), recaem no domínio das normas jus cogens. Essa abordagem, então, procura impedir a impunidade desses crimes, marcando um avanço significativo na busca pela justiça global através de uma jurisdição permanente e, em tese, autônoma.


Contudo, desde sua entrada em vigor em 1º de julho de 2002, a atuação do TPI tem enfrentado desafios e limitações. Alguns autores argumentam que o tribunal carece de legitimidade e continua a ser influenciado pelas dinâmicas de poder, em especial dado a primazia do Conselho de Segurança da ONU (CARDOSO, 2012; GEGOUT, 2013). Outras críticas destacam a ausência de um mecanismo próprio de execução de suas sentenças que garantam uma adesão mais efetiva aos princípios estabelecidos pelo Estatuto, enfatizando a necessidade de medidas coercitivas mais robustas (BARNES, 2011). Nesse sentido, o caso do Sudão é particularmente relevante para averiguar as implicações práticas da atuação do TPI na atualidade. 


A condição no Sudão, país localizado no nordeste do continente africano, abarca múltiplas transgressões dos direitos humanos, incluindo crimes contra a humanidade, crimes de guerra e de genocídio perpetrados por agentes do Estado. Acentuados após 2003, quando grupos rebeldes armados na região de Darfur, ao oeste do Sudão, se insurgiram contra o governo de Omar Hassan Ahmad al-Bashir que ascendeu ao poder estatal em 1989 por meio de um golpe de Estado e se aliou à milícias para conter as insurgências (SCHABAS, 2011), e intensificados em 2023, o conflito na região perdura na atualidade configurando-se como a maior crise de deslocamento do mundo, gerando mais de 7 milhões de refugiados e mais de 24 milhões de pessoas dependentes de assistência humanitária (ONU, 2024). 


Após considerar a situação no Sudão como uma ameaça à paz e à segurança internacionais em 2004, via Resolução nº 1556, e seguir a recomendação da Comissão Internacional de Inquérito sobre Darfur (2005), o Conselho de Segurança utilizou, pela primeira vez, a prerrogativa concedida pelo artigo 13(b) do Estatuto de Roma[1] e encaminhou, em 31 de março de 2005, a situação em Darfur para investigação no TPI, por meio da Resolução nº 1593. Esta foi aprovada com o apoio de onze votos favoráveis e quatro abstenções - dos Estados Unidos, China, Brasil e Argélia.


Desde então, o TPI já iniciou processos contra sete acusados, incluindo a emissão de mandados de prisão para o Ministro de Estado para Assuntos Humanitários da época, Ahmad Harun, e o líder das milícias Janjaweed aliada ao governo, Ali Kushayb (ICC, 2007), ambos em 2007, e para o então presidente sudanês, Omar al-Bashir, em 2009 e 2010, pelos crimes de guerra, contra a humanidade e de genocídio (ICC, 2010). O governo sudanês, por sua vez, argumentou que o TPI não possuía jurisdição sobre o caso, visto que este não é signatário do Estatuto de Roma, rejeitando as prisões dos acusados e suspendendo qualquer cooperação com o Tribunal desde então (FARIAS, 2019).


Conjuntamente, a União Africana[2] também empreendeu esforços para conter a situação no Sudão, estabelecendo em 2004 a Missão de Manutenção de Paz para Darfur (AMIS, em sua nomenclatura em inglês), mas que, no entanto, não logrou alcançar seus objetivos. Em seguida, a AMIS foi substituída pela UNAMID, uma missão híbrida da ONU e da União Africana, instituída em 2007 pelo Conselho de Segurança da ONU com o propósito de salvaguardar a população civil em Darfur. Esta, por seu turno, concluiu o seu mandato em 31 de dezembro de 2020 por insistência do governo sudanês, eliminando o que ainda restava da capacidade da ONU no país para proteger civis e divulgar publicamente a situação dos direitos humanos na região (HRW, 2024).


A problemática ainda se agrava dado à não cooperação por parte de Estados membros e não membros do Estatuto, em especial países africanos que se opõem a seguir as determinações do Tribunal. A Liga Árabe[3] e a União Africana, por sua vez, apesar de demonstrarem preocupação com a grave situação em Darfur, vieram a solicitar ao Conselho de Segurança da ONU que suspendesse qualquer acusação, com base nas prerrogativas do artigo 16 do Estatuto[4] que versa sobre a suspensão de inquéritos perante o TPI, para que os esforços de paz não fossem prejudicados (JAMSHIDI, 2013).


Ademais, outro agravante se dá devido a inação do Conselho de Segurança da ONU em adotar as medidas necessárias para reforçar às decisões do TPI, principalmente por ter sido este órgão que encaminhou a situação do Sudão ao Tribunal, mas que fica sujeito à vontade e aos interesses políticos de seus membros permanentes, mesmo após os vários relatórios semestrais da Procuradoria do TPI, que se encontra em sua trigésima oitava versão (janeiro de 2024), urgindo pela cooperação internacional e por um posicionamento assertivo do Conselho de Segurança da ONU para conter o conflito em Darfur e, finalmente, responsabilizar os culpados (FARIAS, 2019).   


No dia 30 de janeiro de 2024, o procurador do TPI, Karin AA Khan KC, apresentou ao Conselho de Segurançada ONU o seu trigésimo oitavo relatório sobre a situação em Darfur, nos termos da Resolução 1593 (2005). Em sua declaração perante a sessão no Conselho de Segurança da ONU, o mesmo expressou profunda preocupação com a situação do Sudão, frente a escalada dos conflitos que se acentuou desde abril de 2023, e que já deslocou (internamente) 7,1 milhões de pessoas e obrigou outras 1,5 milhões a fugir para países vizinhos desde então, em especial para o Chade (ICC, 2024). 


            Na ocasião, o procurador realçou que, apesar das dificuldades e lentidão das investigações, dado a não cooperação sudanesa, há claros indícios da contínua ocorrência de crimes ao abrigo do Estatuto de Roma em Darfur, perpetrados tanto pelas Forças Armadas Sudanesas como pelas Forças de Apoio Rápido e grupos aliados. Ademais, para Khan, há um risco real do conflito no Sudão se estender por outros países da região, visto que os países que o rodeia são frágeis e não estão isentos de seus próprios desafios.


Como bem pontua Miranda (2010), a eficácia do procedimento judicial do TPI está intrinsecamente ligada à cooperação dos Estados, sendo uma condição essencial para o seu pleno funcionamento. Assim, a obrigação de um Estado cooperar com o Tribunal materializa a busca pela concretização da justiça penal internacional, e sem ela a justiça se inviabiliza. No caso em questão, após mais de duas décadas, foram sem sucesso as tentativas do TPI em supervisionar a execução de suas decisões junto ao governo sudanês, e o conflito no Sudão, que assola o país na atualidade, põe em questionamento a eficiência de uma jurisdição permanente que enfrenta o problemático debate acerca da interface entre paz e justiça.


Assim, frente ao contínuo conflito e as graves transgressões dos direitos humanos que se presencia no Sudão, que diluem a eficácia do Tribunal e instiga, consequentemente, o desgaste contínuo do Direito Penal Internacional, se faz necessário reforçar a atuação do TPI nos dias atuais na concreção de seu ideário primário, que almeja por meio da paz e da justiça reforçar o combate à impunidade, prevenir o (res)surgimento de conflitos e resguardar os direitos humanos.  

 

 

REFERÊNCIAS

 

BARNES, Gwen P. The International Criminal Court’s Ineffective Enforcement Mechanisms: The Indictment of President Omar Al Bashir. Fordham International Law Journal. v. 34, 2011.

 

CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. Os tribunais internacionais contemporâneos e a busca da realização do ideal da justiça internacional. Revista da Faculdade de Direito da UFMG, n. 57, 2010.

 

CARDOSO, Elio. Contexto histórico. In: CARDOSO, Elio. Tribunal Penal Internacional: conceitos, realidades e implicações para o Brasil. Brasília: FUNAG, 2012.

 

FARIAS, Maysa Furtado et al. Desafios da atuação do tribunal penal internacional no Sudão. 2019.

 

GEGOUT, Catherine. The International Criminal Court: limits, potential and conditions for the promotion of justice and peace. Third World Quarterly. n.5, pp. 802-825, 2013.

 

GIL, Antonio Carlos et al. Como elaborar projetos de pesquisa. São Paulo: Atlas, 2002. pp. 41-54.

 

HUMAN RIGHTS WATCH. Global Rights Crises Deepen as Worlds Leaders Shy Away. 11 jan. 2024. Disponível em: <https://www.hrw.org/news/2024/01/11/global-rights-crises-deepen-world-leaders-shy-away>.

 

HUTCHINSON, Terry. Doctrinal research: researching the jury. In: Research methods in law. Routledge, 2013. pp. 15-41.

 

INTERNATIONAL CRIMINAL COURT. Rome Statute (1998). 1998.

 

INTERNATIONAL CRIMINAL COURT. 2007. The Prosecutor v. Ahmad Muhammad Harun ("Ahmad Harun") and Ali Muhammad Ali Abd-Al-Rahman ("Ali Kushayb"). Disponível em: <https://www.icc-cpi.int/court-record/icc-02/05-01/07-2>.

 

INTERNATIONAL CRIMINAL COURT. 2010. The Prosecutor v. Omar Hassan Ahmad Al Bashir. Disponível em: < https://www.icc-cpi.int/darfur/albashir>.

 

INTERNATIONAL CRIMINAL COURT. ICC – The Prosecutor of the ICC opens investigation in Darfur. Press Release. 6 jun. 2005. Disponível em: <https://bit.ly/39c9yzN>.

 

INTERNATIONAL CRIMINAL COURT. Prosecutor. Thirty-eighth Report of the Prosecutor of the International Criminal Court to the United Nations Security Council pursuant to Resolution 1593 (2005). 30 jan 2024. Disponível em: <https://www.icc-cpi.int/news/statement-icc-prosecutor-karim-khan-kc-united-nations-security-council-situation-darfur->.-*

 

JAMSHIDI, Maryam. The enforcement gap: How the International Criminal Court failed in Darfur. Aljazeera, [S. l.], 25 mar. 2013. Disponível em: <https://www.aljazeera.com/indepth/opinion/2013/03/201332562714599159.html>.

 

LAKATOS, Eva Maria; MARCONI, M. de A. Fundamentos de metodologia científica. 5ª Ed. São Paulo: Atlas, v. 310, 2003. pp. 106-7.

 

MIRANDA, João Irineu de Resende. O modelo de cooperação do Tribunal Penal Internacional. Prismas: Dir., Pol. Publ. e Mundial., Brasília, v.7, n.2, p.103-135, jul./dez. 2010.

 

ONU NEWS. Crise humanitária no Sudão pede ação imediata em 2024. 8 jan. 2024. Disponível em: <https://news.un.org/pt/story/2024/01/1825772>.

 

ONU. Assembleia Geral. Report of the International Commission of Inquiry on Darfur to the United Nations Secretary-General (2005).

 

ONU. Conselho de Segurança. Resolução 1556 (2004), S/RES/1556.

 

ONU. Conselho de Segurança. Resolução 1593 (2005), S/RES/1595.

 

RUIZ VERDUZCO, Deborah. The Relationship Between the ICC and the United States Security Council. In: STAHN, Carsten. (Ed.). The Law and Practice of the International Criminal Court. Oxford: Oxford University Press, 2015, p. 30 - 65.

 

SCHABAS, William. An Introduction to the International Criminal Court, 4ª ed. Cambridge: Cambridge University Press, 2011. p. 49.

 


[1] Artigo 13 - Exercício da Jurisdição: O Tribunal poderá exercer a sua jurisdição em relação a qualquer um dos crimes a que se refere o artigo 5º, de acordo com o disposto no presente Estatuto, se: b) O Conselho de Segurança, agindo nos termos do Capítulo VII da Carta das Nações Unidas, denunciar ao Procurador qualquer situação em que haja indícios de ter ocorrido a prática de um ou vários desses crimes.

[2] Organização Internacional que objetiva a promoção da integração entre os países do continente africano nos mais diversos aspectos, atualmente com 55 Estados-membro – o Sudão se encontra suspenso desde 2021.

[3] Organização Internacional que busca ampliar a cooperação e estreitar laços entre os países que compõem a região do Oriente Médio e norte da África, composta por 22 Estados-membro, incluindo o Sudão.

[4] Artigo 16 - Adiamento do Inquérito e do Procedimento Criminal: Nenhum inquérito ou procedimento crime poderá ter início ou prosseguir os seus termos, com base no presente Estatuto, por um período de doze meses a contar da data em que o Conselho de Segurança assim o tiver solicitado em resolução aprovada nos termos do disposto no Capítulo VII da Carta das Nações Unidas; o pedido poderá ser renovado pelo Conselho de Segurança nas mesmas condições.

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